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Uma ilustração de pintores pré-históricos trabalhando nas cavernas de Lascaux, na França moderna. (Dea Picture Library / De Agostini via Getty Images)

A IA pode mudar nossa espécie

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Tradução
Sofia Schurig

Algumas tecnologias aumentam a produtividade, mas outras remodelam não só a nossa sociedade, mas também a nossa fisiologia. Seja qual for o poder de transformação da Inteligência Artificial (IA), a estratégia socialista deve ser a mesma: aumentar o poder do trabalhador.

Desde os primórdios da humanidade, o surgimento repentino de novas tecnologias teve consequências sociais profundas – mas nem sempre óbvias imediatamente. À medida que a forma como vivemos muda, nós também mudamos. Às vezes, de maneira profunda.

Por exemplo, os cérebros dos Homo sapiens em todo o mundo são agora menores do que eram há 300 mil anos. Uma das várias explicações concorrentes para esse fenômeno é a teoria de que o surgimento da linguagem e a disseminação do conhecimento na sociedade reduziram a complexidade dos problemas que os indivíduos precisavam resolver.

Em essência, as primeiras tecnologias humanas – cultura e linguagem – reduziram maciçamente a carga cognitiva sobre os indivíduos. Em vez disso, ela foi externalizada – em histórias, tradições, religiões e artesanatos. Agora, temos cérebros menores do que nossos ancestrais mais antigos, mas sabemos muito mais do que eles poderiam ter sonhado em saber.

Considere outro exemplo: o uso de bastões pontiagudos, especialmente projéteis, nas primeiras sociedades humanas. Esse simples avanço tecnológico ajudou nossos ancestrais a caçar grandes ungulados como mamutes, mas também pode ter desempenhado um papel crucial na promoção de uma sociedade mais igualitária, diminuindo o poder dos machos fisicamente dominantes. Para o famoso primatologista Christopher Boehm, essa redistribuição súbita do potencial de violência explica o declínio nos tipos de agressão reativa que vemos entre os outros grandes macacos. Bastões pontiagudos reorganizaram o poder entre os humanos – a tecnologia promoveu uma cultura evoluída de igualitarismo político que distingue fortemente os hominídeos do chimpanzé ultraviolento, nosso primo mais próximo.

Então, cerca de doze mil anos atrás, novas tecnologias começaram a desafiar esse igualitarismo “do bastão pontiagudo”. Os humanos aproveitaram o poder da evolução e começaram a criar seletivamente plantas e animais, tornando possível um excedente durável e quantificável. A chamada Revolução Neolítica não era apenas sobre comida; trouxe novas ferramentas, relacionamentos e estruturas sociais. O excedente gerado pela agricultura abriu caminho para o estabelecimento de estados agrários. Foi quando as sociedades humanas testemunharam pela primeira vez o surgimento de hierarquias estruturadas e das burocracias nascentes do Estado, com suas armadilhas de poder e subjugação. As armas que antes possibilitavam nossa natureza igualitária agora eram as ferramentas de poder, exploração e dominação.

Os primeiros horticultores experimentais não estavam tentando construir hierarquia a partir de sementes de gramíneas selvagens. Foi uma consequência não intencional de uma inovação muito útil. A acumulação de riqueza e poder, e as instituições estatais que surgiram para defendê-las, também trouxeram a civilização e a linguagem escrita. À medida que a agricultura surgiu, vimos um declínio na saúde e na expectativa de vida; mas eventualmente ela facilitou vidas mais longas, ricas e saudáveis, e uma população humana muito maior.

A emergência do capitalismo, no entanto, marcou uma mudança no ritmo e no padrão da mudança tecnológica. Como qualquer aluno de Karl Marx saberá, o capitalismo é caracterizado por revoluções consistentes e às vezes radicais nas formas como os seres humanos produzem o que precisam. Em modos pré-capitalistas de organização social, o crescimento era lento e caracterizado por colapsos demográficos periódicos. No capitalismo, a produção por trabalhador aumentou constantemente e todos os limites malthusianos foram superados.

De tempos em tempos, uma ruptura tecnológica transforma fundamentalmente os termos nos quais operamos – não apenas como sociedade, mas como espécie.

Nos últimos cem anos, apesar de enormes avanços tecnológicos, certos recursos principais do capitalismo permaneceram estáveis: o poder do estado, a dependência de mercados, a apropriação privada do excedente social, e assim por diante. Mas se olharmos para o passado como nosso guia, com cada novo avanço tecnológico, há o potencial para consequências definidoras de época. A história da humanidade é um testemunho do poder transformador da tecnologia. Avanços passados ampliaram as capacidades produtivas humanas, mas alguns também resultaram na reestruturação da vida social e na redistribuição do poder.

Desde pelo menos os ludistas, e consistentemente desde a década de 1960, as pessoas à esquerda – e em todo o espectro político, para ser franco – têm se preocupado principalmente com as implicações no mercado de trabalho desses avanços tecnológicos implacáveis. Isso é apenas sensato. Novas técnicas de produção frequentemente eliminaram empregos para reduzir custos. Felizmente, o crescimento total da produção compensou na maioria dos casos, permitindo a criação de novos produtos e mercados.

No entanto, a inovação na era digital, até agora, falhou em gerar os enormes aumentos na produtividade total que eram esperados. Computadores, robótica, algoritmos, comunicações via internet e agora inteligência artificial (IA) baseada em grandes modelos de linguagem foram integrados ao processo de produção. No entanto, o crescimento da produtividade per capita ainda é significativamente menor do que durante o período pós-guerra – particularmente nos países já na vanguarda da tecnologia.

Desde a chegada do ChatGPT, as pessoas estão novamente começando a se preocupar. Lutando para entender as implicações dos recentes avanços em IA, especialistas e políticos redescobriram acidentalmente a natureza de duas faces das convulsões tecnológicas. Enquanto alguns preveem um futuro distópico onde o desemprego prevalece e os benefícios acumulam apenas para os proprietários de capital, outros vislumbram um mundo utópico livre de trabalho árduo. Como em rodadas anteriores de avanço tecnológico, as pessoas estão começando a se perguntar quais empregos serão automatizados e em que medida.

Ninguém pode ter certeza do que o futuro reserva quando se trata de tais avanços tecnológicos. No entanto, temos centenas de anos de história capitalista, o que nos permite extrair algumas lições gerais. A automação do emprego geralmente resultou no absorção de mão-de-obra em outras indústrias. Essas mudanças na força de trabalho estão associadas a mudanças significativas na distribuição de poder e renda entre as economias.

A maioria das grandes inovações do último século resultou no aumento da prerrogativa gerencial e foram destinadas a isso. A mudança técnica raramente é neutra em relação aos efeitos que tem na experiência subjetiva do trabalho. O poder das instituições da classe trabalhadora, sindicatos e partidos, pode impactar os efeitos de renda e emprego da automação, mas raramente moldou a trajetória da mudança tecnológica em si.

De tempos em tempos, no entanto, uma ruptura tecnológica consegue, de fato, transformar fundamentalmente os termos nos quais operamos – não apenas como classe ou sociedade, mas como espécie. Assim como o surgimento da linguagem ou da agricultura, o surgimento da IA pode muito bem ser uma dessas mudanças definidoras de época. Mas não é óbvio que o efeito no emprego será o mecanismo pelo qual experimentaremos essa convulsão.

Enquanto escrevemos, a guerra aprimorada por IA assola Gaza e o leste europeu. Novos e aterrorizantes modos de vigilância estão sendo implantados em todo o planeta. E está se tornando cada vez mais difícil discernir imagens e sons digitalmente aumentados ou produzidos daqueles capturados da vida real. Essas aplicações não mercadológicas são politicamente significativas e, francamente, mais assustadoras do que quaisquer mudanças no emprego.

A ciência e a tecnologia estão prestes a avançar de maneiras novas e podem progredir em direções muito difíceis para muitos – ou até todos – entenderem. Com isso vem tanto risco quanto possibilidade. Por exemplo, a promessa de um mundo mais saudável e rico é muito real, mas também é o aterrorizante acúmulo de aplicações militares de IA destrutivas.

Assim como foi desde o início do movimento trabalhista, os socialistas devem se envolver na política em um cenário tecnológico mutante. Lutar contra a automação, como tal, pode ser uma batalha perdida – mas defender a autonomia e o poder dos trabalhadores não precisa ser. Demandas pela distribuição dos ganhos de eficiência são o mínimo necessário. Mas, com relação aos enormes desconhecidos da tecnologia de IA, não há um caminho óbvio.

O que sabemos é que os trabalhadores e as pessoas comuns devem ter poder de decisão em sua implementação. Em um artigo famoso, Claus Offe e Helmut Wiesenthal escreveram sobre como os problemas de ação coletiva diferem para as elites e os trabalhadores comuns. Os interesses das elites são transparentes – todas as necessidades estão a jusante do lucro – e isso pode ser alcançado por meio de tecnocratas e advogados que fazem o que querem. Os interesses da classe trabalhadora, no entanto, nunca são transparentes; eles sempre envolvem diálogo e devem ser descobertos.

Algumas pessoas simplesmente precisam de mais renda; outros podem ser mais velhos e focados na segurança no local de trabalho; alguns têm necessidades relacionadas à saúde ou filhos que precisam de seguro; outros ainda preferem barganhar por mais tempo livre. O diálogo sempre foi necessário não apenas para alcançar, mas também para compreender os objetivos das pessoas comuns.

O futuro da IA não é diferente e exigirá um diálogo contínuo para descobrir quais são nossos interesses. Esse processo será uma condição necessária, se não suficiente, para a governança humana das novas tecnologias. Um futuro decente exigirá que a grande maioria das pessoas tenha voz quando se trata de pesquisa, desenvolvimento e implementação de tecnologia. Isso só é possível com sindicatos mais fortes e partidos socialistas disputando o poder. Há muita incerteza em torno do ritmo e do conteúdo dos próximos anos de mudança técnica. Devemos garantir deixar nossa marca da melhor forma possível.

O que é bom para poucos raramente é totalmente bom para muitos, certamente não a curto prazo. A longo prazo, esperamos que, ao contrário da chegada da linguagem e da cultura humana, nossos cérebros não encolham no processo.

Sobre os autores

Asher Dupuy-Spencer

é editor da Verso Books.

David Calnitsky

é professor assistente no departamento de sociologia da Universidade de Western Ontario.

Cierre

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Published in Análise, Europa, História and Tecnologia

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