UMA ENTREVISTA DE
Fernandinando PezzopaneNos últimos meses, as mobilizações de solidariedade para com o povo palestino cresceram ao redor do mundo. Mas nem sempre são bem recebidas – ou mesmo toleradas – pelos poderes instituídos. Em abril, o antigo ministro das finanças grego, Yanis Varoufakis, deveria ter participado, através de uma ligação vídeo, em um congresso para a Palestina, em Berlim. Em vez disso, a reunião foi interrompida pela polícia e ele foi impedido de entrar no país.
Antes das eleições do próximo fim de semana para o Parlamento Europeu, a guerra de Israel em Gaza é, para muitos dos principais partidos, um assunto sobre o qual preferem não falar. Mas o partido pan-europeu de Varoufakis, o DiEM25, é certamente uma exceção, tomando uma posição forte a favor de Gaza. Numa entrevista com Ferdinando Pezzopane da Jacobin, Varoufakis falou da cumplicidade do Ocidente na guerra, dos protestos contra a mesma e da perspectiva de construir uma Europa diferente.
FP
Os Estados-membros da União Europeia estão reprimindo a dissidência popular sobre a guerra de Israel e ao apoio dos seus líderes a ela. O governo alemão, que é supostamente de centro-esquerda, tem interrompido todo o tipo de manifestações a favor da Palestina. Eles até prendem ativistas judeus antissionistas, como os membros da Voz Judaica pela Paz, um grupo que teve a sua conta bancária congelada.
Em abril, tanto você como o reitor da Universidade de Glasgow foram banidos da Alemanha, após acusações infundadas de propagação do antissemitismo. Tais alegações também têm sido dirigidas contra todos os que criticam Israel e o seu regime de apartheid e que apele para o fim do genocídio, ao mesmo tempo que a islamofobia institucional cada vez mais crescente. O que está realmente acontecendo aqui?
YV
Há alguns meses, não pensei que fosse provável que o Estado alemão me banisse do país, especialmente por causa da minha participação num evento a favor da paz e do fim de um genocídio. O fato dessa proibição se estender até à minha participação digital em eventos na Alemanha só aumenta o absurdo das medidas que estão dispostos a tomar para proibir vozes pró-paz e pró-Palestina.
Agora é evidente que não há limites para o que esta Europa fará para silenciar qualquer voz que não se alinhe ao jogo. A razão para isso é a transformação da União Europeia numa União de Guerra, a transformação da UE em uum fantoche da OTAN.
Josep Borrell, o chefe dos Negócios estrangeiros da UE, deu-nos uma pista sobre a mudança do cosmopolitismo para o etno-regionalismo quando descreveu a UE como um belo “jardim” ameaçado pela “selva” não europeia à espreita fora de suas fronteiras. Mais recentemente, o presidente francês Emmanuel Macron e Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, pediram aos europeus não apenas que se preparassem para a guerra, mas, crucialmente, que confiassem na indústria armamentista para o crescimento econômico e o avanço tecnológico da UE.
Ao falhar em convencer a Alemanha, e os chamados Estados-nação frugais, sobre a necessidade de uma união fiscal adequada, a sua desesperada posição de recuo é agora defender uma União de Guerra. Os nossos partidos MeRA25 em Itália, Alemanha e Grécia, e os nossos aliados Clare Daly e Mick Wallace, que estão concorrendo a estas eleições europeias, consideram que a nossa oposição a estes planos é uma das nossas principais lutas políticas no próximo Parlamento Europeu.
FP
Os seus estudos mais recentes centraram-se na relação entre a tecnologia e o sistema econômico, cunhando também o conceito de “tecnofeudalismo”. Israel, na sua ocupação militar dos territórios palestinos, utiliza tecnologia militar, software complexo e até inteligência artificial em grande escala. Tudo isto é produzido principalmente pelas universidades israelenses, que foram fundadas com base na expropriação e ocupação de terras palestinas e têm um mandato para apoiar acriticamente o constante expansionismo de Israel. Desta forma, o conhecimento, da engenharia à arqueologia, passando pelas ciências duras, legitima e alimenta as FDI [Forças de Defesa de Israel] e o genocídio. O que a sua análise tem a dizer sobre estas tecnologias e a produção de conhecimento em Israel?
YV
Permita-me discordar da sua premissa: Israel não desenvolveu as suas armas de alta tecnologia de forma independente, tal como não desenvolveu as suas bombas, caças, tanques e mísseis de forma independente. Todas as tecnologias importantes que Israel utilizou para reprimir e matar palestinos vieram dos Estados Unidos.
Sim, Israel desenvolveu as suas próprias e impressionantes capacidades de P&D (Pesquisa e Desenvolvimento) que permitem às IDF e a outras agências estatais modificar, desenvolver e evoluir as tecnologias de origem americana. E, sim, Israel especializou-se na vigilância algorítmica, ou baseada na nuvem. No entanto, não há dúvida de que Washington, DC, pode desligar os sistemas de alta tecnologia de Israel com um simples toque num interruptor — exatamente como Elon Musk, se quiser, pode desligar o seu Tesla reluzente.
É por isso que em Technofeudalism (Tecnofeudalismo), o meu último livro, me detenho pouco em Israel: não é um ator no confronto entre os dois países que monopolizam o capital das nuvens — os Estados Unidos e a China.
FP
O setor do conhecimento não é o único que tem laços com Israel. As empresas ocidentais de combustíveis fósseis veem Israel como o parceiro mais confiável no Oriente Médio. Continuam a ter acordos comerciais para a pesquisa e extração de combustíveis fósseis, mesmo nas águas territoriais da Palestina. A União Europeia, com o seu plano RePower EU, considera Israel um parceiro estratégico crucial para o setor da energia. Este neocolonialismo energético alimenta e reforça as estruturas dominantes de opressão. Você sempre diz que a Europa ou será democratizada ou implodirá. Certamente, a UE não pode ser um “jardim”, como afirma o chefe dos negócios estrangeiros, Borrell, enquanto queimamos o futuro de comunidades inteiras?
YV
Sem paz e justiça ambiental, não há futuro. Nas últimas décadas, permitimos que a energia fosse privatizada, que se tornasse um monopólio privado. A energia é um bem essencial, não podemos viver sem ela. Isto, por sua vez, significa que as entidades privadas que detêm o setor de energia acumulam grande poder e são capazes de impor aos governos acordos para perfurar os nossos mares em busca de combustíveis fósseis e acordos com Estados genocidas como Israel.
A resposta é simples, mas exige uma grande luta: a energia deve voltar a ser um bem público, propriedade exclusiva do setor público, operando para o bem comum e não para o lucro. Os capitalistas não se preocupam com o ambiente. Só se preocupam com o lucro. Temos que recuperar o setor da energia.
FP
O genocídio na Palestina parece encapsular toda uma série de crises. Em todo o mundo, assistimos a mobilizações que apoiam o povo palestino e pedem por um boicote acadêmico e econêmico a Israel. Você também é professor universitário: Qual é, na sua opinião, a importância destes protestos nas universidades?
YV
Eles me enchem de esperança e otimismo. Trazem-me a memória do histórico movimento anti-guerra nos EUA contra a guerra no Vietnã e, claro, a rebelião de maio de 68. A onda de perseguição e censura desencadeada pelos EUA, mas também pelos governos da UE que apoiam a máquina de guerra de Israel à custa dos intelectuais, dos manifestantes e de todas as vozes que falam em nome da paz, não vai fazer desanimar o movimento de solidariedade com a Palestina. Pelo contrário, os movimentos estudantis estão ganhando força em todo o mundo e o elemento-chave para a necessária escalada é a participação, juntamente com os estudantes, dos sindicatos e dos movimentos populares pela paz.
Quanto ao boicote a Israel, é fundamental. O DiEM25 e eu pessoalmente, temos laços estreitos com o Movimento de Boicote, Desinvestimento e Sanções (Boycott, Divestment, and Sanctions movement – BDS). Este movimento defende o princípio simples de que os palestinos têm direito aos mesmos direitos que o resto da humanidade. Para demonstrar este princípio, o BDS apela ao boicote dos bens, serviços, etc. israelitas por todos nós, enquanto cidadãos, consumidores, acadêmicos, para pressionar Israel a respeitar o direito internacional. Só podemos contar com a nossa classe: os nossos governos são totalmente compatíveis com os interesses dos oligarcas, do sistema da UE e da OTAN.
FP
Na Itália, os estivadores do CALP [Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Portuários] adotaram uma atitude antimilitarista, recusando-se a carregar armas nos navios. Outro sindicato de base, o SiCobas, está boicotando grandes varejistas como Carrefour e outras empresas com ligações a Israel. O Collettivo [di Fabbrica] GKN – um grupo de trabalhadores da indústria automobilística despedidos, perto de Florença, que apela para uma estratégia de reindustrialização verde liderada pelos trabalhadores – está criando mobilizações com a comunidade palestina e os movimentos climáticos. Como podemos alimentar estas diferentes chamas de resistência e tentar criar uma agenda contra-hegemônica na Europa diferente da agenda da classe dominante?
YV
Estando lado a lado com os movimentos populares que estão emergindo neste momento na Europa, exigindo paz e justiça ambiental, e, claro, com os sindicatos. A classe dominante usa o medo para controlar as massas. Nós, como verdadeira esquerda radical, devemos quebrar esse medo com uma visão de uma utopia tangível.
A nossa revolução deve usar a tecnologia que as Big Techs estão desenvolvendo agora. Ela pode nos fornecer os meios para comunicar, cooperar e desferir golpes contra o império do capital em toda a parte. Tudo o que precisamos fazer é usá-la para nos juntarmos e transformarmos o sonho impossível em um plano óbvio.
Mas o que significa na prática derrubar o império do capital? Como a humanidade pode reclamar dos seus bens comuns saqueados, em terra, nos oceanos, no ar e, em breve, no espaço sideral?
De duas maneiras: legislando de modo a que as empresas pertençam àqueles que nelas trabalham, na base de um empregado, uma ação, um voto; e negando aos bancos o monopólio sobre as transações das pessoas.
Os bancos e o lucro desaparecerão então como forças motrizes das nossas economias, porque os bancos serão desestabilizados e a distinção entre lucros e salários deixará de fazer sentido: todos serão acionistas iguais das empresas para as quais trabalham.
A morte simultânea do mercado de ações e do mercado de trabalho, juntamente com o desaparecimento dos bancos, redistribuirá automaticamente a riqueza, tornará possível oferecer um rendimento básico a todos e – como um magnífico subproduto – eliminará os incentivos à guerra.
O fim do poder do capital sobre a sociedade permitirá que as comunidades decidam coletivamente sobre a prestação de cuidados de saúde, a educação e o investimento para salvar o ambiente do nosso crescimento virulento.
A verdadeira democracia será finalmente possível, para ser praticada nas assembleias de cidadãos e de trabalhadores, e não à porta fechada, onde se reúnem oligarcas secretos.
Esta dupla democratização, do capital e do dinheiro, parece um sonho impossível. Mas não é mais impossível do que as ideias de uma pessoa, como um voto, ou acabar com os direitos divinos dos reis, soaram no passado.