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(Reprodução)

Karl Marx também foi um militante antirracista

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O pensador revolucionário alemão Karl Marx completou 206 anos esse mês. Ao contrário do que alegam em alguns meios, inclusive na esquerda, ele esteve profundamente envolvido nas lutas antirracistas de sua época e sua crítica ao racismo como crítica ao capitalismo permanece incontornável e urgente até hoje.

O texto a seguir foi publicado na 7ª edição impressa da Jacobin Brasil sobre “Esquerda e poder”. Adquira a sua edição avulsa ou assine um de nossos planos!


A obra de Karl Marx é profundamente antirracista. Uma perspectiva recorrente em todo o seu itinerário teórico-político, compartilhado com Friedrich Engels, é a rejeição sistemática e intransigente da raça, do racismo e do biologismo como determinações independentes da realidade social. O antirracismo em Marx e Engels, sistematizado em coletâneas, como os Escritos sobre o colonialismo e A guerra civil nos Estados Unidos, e, principalmente, em O Capital, revela-se no caráter revolucionário do seu método, constituído através da materialidade das lutas da classe trabalhadora, colocado em ação.

O método não é uma “pintura paradigmática idealizada de como as coisas deveriam ser”, mas dedica-se à investigação do modo de produção capitalista, como crítica da totalidade das formas sociais de exploração e opressão, tal como o racismo, que busca superar. Os pressupostos do marxismo, compreendido como ciência da revolução, não são pressupostos arbitrários ou dogmáticos, mas antes reais, a partir dos quais se estabelece a abstração-concreta. As suas premissas referem-se aos sujeitos reais e suas condições materiais de vida, a própria “vida do material”, que importa tornar inteligível, demonstrando suas contradições.

A perspectiva antirracista do marxismo relaciona-se ao esforço de constituição de uma teoria explicativa das condições históricas de produção e reprodução da vida social, o que envolve a crítica da noção abstrata de “determinação natural dos indivíduos humanos”. Afastando-se de pressupostos essencialistas e naturalistas, a concepção dialética e materialista da história compreende a humanidade em toda a sua diversidade à luz do processo histórico que se distingue da ordem natural, não pela ideia, consciência ou religião, mas a partir do momento da produção dos meios de vida, a produção material da existência. Recusando as “construções ideais fixas e imutáveis”, Marx e Engels desconstruíram não somente a filosofia de Hegel, mas os “diferentes profetas” hegelianos (Feuerbach, Stirner, Bauer e consortes).

A oposição ao neo-hegeliano Max Stirner, a título exemplificativo, lança luzes sobre a questão, visto que este explicou “toda a deformação dos indivíduos a partir do simples processo natural de geração”. No debate proposto em A Ideologia Alemã (1845-46), as chamadas “diferenças do gênero humano” resultaram de processos historicamente determinados. Em Stirner, porém, o genus produziu “a divisão do trabalho e as mutações surgidas sob as circunstancias sociais”. As “aptidões físicas e espirituais” ou “a natureza das coisas”, “na associação stirneriana”, estabeleceram as bases essenciais, fixas e imutáveis das relações sociais. No debate com Stirner, Marx e Engels criticaram o paradigma biológico-naturalista, recusando as noções essencialistas de “pureza racial” e “degeneração racial”. Declararam que, “mesmo as diferenças do gênero humano surgidas espontaneamente, como as diferenças entre raças etc., sobre as quais Sancho não fala absolutamente nada, podem e têm de ser historicamente eliminadas”, uma vez que não existe uma essência fixa a-histórica posicionada antes da história real dos sujeitos. Nos limites do debate filosófico e político da época, Marx e Engels divergiram frontalmente de toda e qualquer concepção naturalista e essencialista de explicação histórica – uma chave de leitura importante para a compreensão da perspectiva antirracista do marxismo.

O ataque de Marx ao racismo científico

Na ideologia racista “científica” moderna ocorre a caracterização da existência dos chamados traços naturais e hereditários, com base nos quais os seres humanos são categorizados em agrupamentos ordenados no interior de uma hierarquia “natural”. Nas palavras de Frantz Fanon (“Em defesa da revolução africana”), primeiro, “afirma-se a existência de grupos humanos sem cultura; depois, a existência de culturas hierarquizadas”. Deste modo, toda a teoria do racismo moderno sustenta que essa hierarquia supostamente “natural” justifica e até mesmo exige uma correspondente hierarquia social das raças, na qual as raças “superiores” dominam as “inferiores”.

O naturalismo e o essencialismo dão base à ideologia racista que, apoiada nas teorias da diferença humana, da desigualdade natural e nas técnicas de controle social precedentes ao capital, alcança, porém, uma especificidade no modo de produção capitalista, período no qual a forma social raça se universaliza. Historicamente, a ideologia racista tem como pressuposto uma divisão biológica e hierárquica da humanidade. Assim, o racismo perquiriu “no biológico a base material da doutrina”. Todo esse processo ocorreu em conjunto com a ascensão do colonialismo e do capitalismo como modo de produção hegemônico e com o surgimento e expansão do comércio transatlântico de escravos. O “racismo não é um todo”, mas consiste no elemento mais visível, aparente, cotidiano, geralmente grosseiro, vulgar, e por vezes, “sofisticado”, no interior de um determinado modo de produção e reprodução social.

A ascensão do capitalismo foi acompanhada pela universalização de todas as suas formas sociais fundamentais (mercadoria, direito, estado, etc.), bem como pela emergência de sujeitos de direito enquanto sujeitos-raciais, tais como negros e judeus, com histórias diferentes, mas que se aproximaram em seus percursos porque esses povos encarnaram, ao mesmo tempo, a afirmação e a negação da subjetividade jurídica e “foram expostos, em graus distintos, à possibilidade concreta de desaparição” (Mbembe segue Fanon: “a labilidade emocional do negro”; “a culpabilidade quase genérica do judeu”). Nesse sentido, no contexto de racialização da política e de racialização da judeidade no século xix na Europa, o escrito do jovem Marx Sobre a questão judaica (1844) conformou a primeira grande reflexão antirracista do marxismo. O ensaio veio à tona em um momento social e político que não era nada propício para os judeus alemães. Com o surgimento do Iluminismo, da Revolução Francesa e Revolução Industrial, os judeus passaram a gozar de alguns aspectos do direito à cidadania. De fato, em 11 de março de 1812, Friedrich Wilhelm III, o Kaiser da Prússia, publicou o Édito da Emancipação Judaica. No entanto, de imediato emergiram movimentos racistas de oposição à emancipação dos judeus.

A historiadora Miriam Oelsner expôs a resistência a esse processo. Friedrich Rühs afirmou que a emancipação judaica contrariou os interesses germânicos e da cristandade na nação alemã, e advogou que os judeus fossem sumariamente extirpados. Ernst Moritz Arndt, que era um “inimigo declarado dos judeus”, os considerou um povo “putrefato e degenerado”. Para Jacob Fries, os judeus eram povos estrangeiros que deveriam ser expulsos e eliminados. Hundt-Radowsky, por sua vez, considerou os judeus como povos deicidas e criminosos. Em 1819, o movimento popular Herusalema est perdita protagonizou ataques antissemitas, a exemplo do ocorrido em Frankfurt, em agosto daquele ano. Foi precisamente nesse contexto que o escritor judeu Saul Ascher cunhou o termo “judeufobia”, na luta de autodefesa judaica. Esse período denominado de “Primeira Onda Antissemita” marcou o surgimento de movimentos racistas. O historiador judeu Salo W. Baron também abordou o renascimento de um ativismo antissemita atrelado ao ódio racial. Em suas palavras, “na vasta literatura antissemita que apareceu antes e depois de 1819, a maioria dos argumentos do antissemitismo alemão posterior, incluindo até mesmo suas características raciais, foram apresentados de forma eloquente”.

Nos limites do debate filosófico e político da época, Marx e Engels divergiram frontalmente de toda e qualquer concepção naturalista e essencialista de explicação histórica — uma chave de leitura importante para a compreensão da perspectiva antirracista do marxismo.

O marxista Daniel Bensaid declarou que “alguns críticos condenaram Marx pelo uso do termo ‘raça’ (rasse) em duas passagens nos textos dos Anais Franco-Alemães (mas não no artigo sobre a questão judaica)”. Esse dado é interessante, sobretudo porque um dos aspectos da construção social ou cultural da raça diz respeito ao plano do discurso. Ao longo da história, os povos de origem judaica e outros povos oprimidos foram constituídos como uma raça através das análises discursivas produzidas sobre eles. No entanto, no ensaio sobre a questão judaica, o discurso de Marx foi, ao contrário, profundamente antirracista, expressão da militância de Marx na Gazeta Renana em torno da causa da emancipação dos judeus (ver, por exemplo, a Carta de Marx a Arnold Ruge, de 13 de março de 1843).

Diferentemente, os teóricos antissemitas nesse período fizeram oposição ao Édito da emancipação judaica na Alemanha por meio da evocação de um conjunto de aspectos religiosos, nacionais e raciais sobre os judeus. O texto de Marx, porém, operou na contramão desse movimento, expondo uma crítica radical aos limites expressos da Revolução Francesa e de toda a retórica da universalização dos direitos humanos. Na controvérsia com Bruno Bauer, Marx prestou apoio à emancipação político-civil dos judeus sem, no entanto, exigir que eles renunciassem à sua fé e religião, visto que, em seu entendimento, as religiões somente poderiam ser superadas em conjunto com a superação da “miséria real”. Para Marx, a emancipação política dos judeus representava um grande progresso, não chegando a ser “a forma definitiva da emancipação humana em geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana dentro da ordem mundial vigente”.

Engels, por sua vez, também condenou o antissemitismo e o ódio racial contra os judeus em sua polêmica contra Eugen Dühring, teórico que almejou livrar os Estados europeus do que ele próprio denominou ser a “submiscigenação judaica mais intensa”. Para Engels, o “ilustre” professor de filosofia esteve “tão atolado em veleidades pessoais a ponto de chamar de ‘juízo natural’ fundado em ‘razões naturais’ o preconceito popular contra os judeus advindo do bigotismo da Idade Média”. Anos mais tarde, em 1890, o próprio Engels realizou nova condenação contundente do antissemitismo racial, designando-o como “uma cultura retardada” de “reação dos estratos sociais medievais decadentes contra uma sociedade moderna”. No entanto, mais uma vez, Fanon pôde ir além, quando afirmou que a burguesia racista alçada ao poder “em nome da raça” foi incapaz de “fazer triunfar um catecismo humanista mínimo”. De alguma forma, ela mascarou o seu racismo e manteve “intacta sua proclamação da suprema dignidade humana”.

De fato, as teorias raciais modernas surgiram entre os séculos xvii ao xix. A obra de François Bernier (1625- 1688) é um marco da classificação racial, assim como as formulações de Henri de Boulainvilliers (1658-1722), Georges Louis Leclerc, conde de Buffon (1701-1788), Carl Von Linné (1701-1789), Cornelius de Pauw (1739-1799), Georges Cuvier (1769-1832), Louis Agassiz (1807-1873), Arthur de Gobineau (1816-1882), Stewart Chamberlain (1855-1927), Ludwig Gumplowicz (1839-1909), e centenas de outros teóricos racistas. O pensamento filosófico e político moderno foi profundamente influenciado por concepções racialistas. Em filosofia, Immanuel Kant foi, sem dúvida, um pioneiro do pensamento racial. Em sua obra intitulada Geografia Física (1802), lemos que “a humanidade atinge a sua maior perfeição na raça dos brancos”. Nas Reflexões sobre Antropologia, Kant acrescentou: “o negro pode ser disciplinado e cultivado, mas nunca é genuinamente civilizado. Ele cai por vontade própria na selvageria”. Assim, “os [nativos] americanos e os negros” não poderiam governar a si próprios, servindo “apenas para escravos”. Em suas Observações sobre o Sentimento do Belo e do Sublime (1764), Kant nada mais fez do que repetir o filósofo David Hume (1711-1776) para alegar o sofisma: “Tão essencial é a diferença entre essas duas raças [pretos e brancos]”. Segundo Kant, “os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo”. E, advertiu que “o senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um negro tenha demonstrado talentos (…). Não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência”

O filósofo G. W. F. Hegel compreendeu o geist, o espírito humano, em seu desenvolvimento e transformação na história: a história mundial como o “processo civilizatório” que se desenvolveu a partir do Oriente em direção ao Ocidente. A civilização humana, para o expoente do idealismo alemão, transcorreu do Oriente (Mesopotâmia e Egito) para encontrar o seu ponto mais elevado de florescimento nas sociedades Ocidentais. As grandes realizações civilizatórias da história eram, portanto, aquelas efetuadas pelos povos da Europa Ocidental. Hegel considerou que existiam dois tipos de povos no mundo: povos com história e povos sem história. Os povos com história constituíram, ao longo das suas trajetórias, os Estados nacionais, a base para o desenvolvimento da civilização. Por sua vez, todos os povos sem Estados foram colocados na categoria de povos sem história. Em suma, tem-se em Hegel uma tipologia do desenvolvimento histórico com fortes traços racistas e etnocêntricos.

Em sua obra Filosofia da História (1837), ele declarou que “a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência”. A passagem é reveladora de como Hegel levou às últimas consequências o idealismo filosófico em suas bases racialistas. O “negro” apareceu no pensamento do filósofo como algo aprisionado ao “homem natural, selvagem e indomável”, portanto, como um ser carente “do conhecimento de uma essência absoluta”, um tipo sem moralidade e sentimento, uma vez que, para Hegel, “neles, nada evoca a ideia do caráter humano”. Nesse sentido, a África e os negros não possuíam história porque representavam a negação da evolução da categoria da universalidade do ser humano. As palavras finais de Hegel sobre o continente africano sentenciaram: “com isso, deixamos a África. Não vamos abordá-la posteriormente, pois ela não faz parte da história mundial; não tem nenhum movimento ou desenvolvimento para mostrar”. No entanto, o elemento positivo de Hegel, a “negatividade dialética”, foi preservado por Marx e Fanon, que depois viria a diagnosticar que “qualquer ontologia torna- -se irrealizável em uma sociedade colonizada e civilizada”, visto que tal estrutura social “não permite compreender o ser do negro”.

O marxismo é abolicionista, anticolonial e antirracista

Na contramão dos postulados racistas, a totalidade da obra de Marx e Engels é marcada pela perspectiva teórico-metodológica e política de crítica ao ocidente-capitalista como crítica ao paradigma racial-colonial e escravista, à sua materialidade e à sua ideologia. Na verdade, eles não somente escreveram sobre o assunto, mas atuaram fervorosamente nas batalhas contra o colonialismo, a escravidão negra nas Américas e o racismo. Realizaram, assim, a aufhebung hegeliana, a ruptura negativo-superadora. E ao superarem Hegel, também ultrapassaram Kant, e toda a filosofia burguesa tradicional. Essa ruptura epistemológica foi uma ruptura antirracista. Ruptura em defesa da “raça africana” subjugada, por sua emancipação humana, como emancipação de todos os explorados e oprimidos.

A virada abolicionista, anticolonial e antirracista de Marx teve na obra A Miséria da Filosofia (1847) um momento importante, precisamente quando percebeu a impossibilidade de desenvolver a crítica do capital sem a crítica da escravidão negra e do racismo. Marx foi, portanto, pioneiro ao estabelecer as conexões históricas entre escravidão-colonial e capitalismo, um elemento constante em toda a sua obra. Na polêmica contra Proudhon, expôs que a escravidão “dos negros no Suriname, no Brasil e nas regiões meridionais da América do Norte” consistiu no pivô do industrialismo, uma vez que, “sem escravidão, não haveria algodão e, sem algodão, não haveria indústria moderna”. E acrescentou: “Foi a escravidão que valorizou as colônias, foram as colônias que criaram o comércio mundial – esse comércio mundial que é a condição necessária da grande indústria mecanizada. Assim, a escravidão é uma categoria econômica da mais alta importância”.

Para Marx, porém, os negros não foram escravizados por serem integrantes das chamadas “raças inferiores”. Ao contrário, recusa veementemente as noções de hierarquia e supremacia racial. Ao se insurgir contra o racismo, Marx se colocou diante de uma questão: afinal o que é um homem negro? A resposta a esta pergunta consta na famosa passagem de Trabalho Assalariado e Capital (1849), reproduzida no capítulo xxv de O Capital, intitulado “A Teoria Moderna da Colonização”. A síntese é a seguinte: “Um negro é um negro. Somente em determinadas condições torna-se escravo”. Em outras palavras, o negro não foi escravizado por ser negro. Mas, foi construído socialmente como negro, como resultado da escravidão – a escravidão atlântica, a única que fez dos africanos mercadorias. Para dizê-lo com Mbembe, “é nesse sentido que se trata da única a ter inventado o Negro, isto é, uma espécie de homem-coisa, homem-metal, homem-moeda, homem- -plástico (…). O Negro é o protótipo desse processo”. Ao encontro desse argumento, o intelectual nigeriano Biko Agozino expôs o que denomina ser o paradigma africano em O Capital. Em suas palavras, “há referências claras nos escritos de Marx aos negros na África e nas Américas. Ele enxergou a libertação dos africanos escravizados como pré-condição para a libertação dos escravos assalariados na Europa, e não o contrário”.

Nos anos 1850, Marx e Engels passaram a considerar a importância do desenvolvimento dos movimentos anticoloniais e das lutas revolucionárias, tanto na periferia da Europa, quanto fora do continente europeu. Dois grandes movimentos eclodiram nesse processo, a Segunda Guerra do Ópio na China (1857-1858) e a Revolta dos Cipaios na Índia (1857), que constam entre os episódios mais importantes de resistência dos povos à dominação colonial europeia. Nesta época, como correspondentes do New York Daily Tribune, um jornal que atingia amplos círculos da opinião pública, Marx e Engels procuraram manifestar em seus escritos um posicionamento claramente favorável àquelas lutas de resistência. Ao comentarem, por exemplo, os métodos violentos utilizados pelos combatentes chineses, acentuaram que aquela forma agressiva de luta correspondia à natureza igualmente violenta e opressiva da dominação de tipo colonial imposta pela Inglaterra contra os povos do Império do Centro. Da mesma forma, ao analisarem os levantes na Índia, fizeram questão de se contrapor à maior parte da imprensa inglesa que caracterizava o movimento insurrecional como expressão da barbárie de um povo atrasado contra os agentes da civilização. Marx e Engels escreveram que, na verdade, os ingleses atuaram no mundo colonial e semicolonial como traficantes de civilização; como dominadores que sob a alegação de que pretendiam levar a civilização aos povos, na prática, procuravam realizar os seus mais mesquinhos interesses de exploração e domínio. Em seus escritos, Marx e Engels destacaram que aos oprimidos cabia moldar as formas de luta de resistência na matéria-prima fornecida pelo dominador. E, como essa matéria-prima, no caso, era o uso da violência indiscriminada e a mais brutal exploração sobre os povos, era esperado que utilizassem métodos violentos em suas lutas de resistência.

Diferentemente, os teóricos antissemitas nesse período fizeram oposição ao Édito da emancipação judaica na Alemanha por meio da evocação de um conjunto de aspectos religiosos, nacionais e raciais sobre os judeus. O texto de Marx, porém, operou na contramão desse movimento, expondo uma crítica radical aos limites expressos da Revolução Francesa e de toda a retórica da universalização dos direitos humanos.

Nesta condição de correspondentes internacionais do jornal New York Daily Tribune, Marx e Engels destoaram da maioria dos intelectuais e ativistas de sua época e desenvolveram uma militância antirracista de enfrentamento à escravidão. Já haviam antes comemorado a tomada de Harper’s Ferry por John Brown e a subsequente Revolta dos Escravos no Missouri: “a coisa mais importante que está acontecendo no mundo hoje”. Em seus artigos e editoriais, adotaram um posicionamento inquestionavelmente favorável às forças antiescravistas e em prol dos movimentos abolicionistas no contexto da Guerra Civil nos Estados Unidos (1861-1865). Havia uma forte tendência na imprensa britânica a apoiar a causa do Sul, pelo fato de que a Confederação escravocrata era a principal fornecedora do algodão utilizado pelas indústrias têxteis da Grã-Bretanha, mas ambos agiram no sentido de desmontar as mistificações que circularam na imprensa inglesa sobre a natureza e objetivos do conflito, sobretudo a ideia de que a Guerra de Secessão fora motivada exclusivamente por contendas tarifárias e de distribuição de receitas públicas entre os estados do Norte e os estados do Sul.

Marx e Engels condenaram sistematicamente o posicionamento dominante na mídia e celebraram as reuniões realizadas por lideranças operárias inglesas em apoio à causa da abolição da escravatura. Uma posição teórica e política que se verificou na atividade de Marx no âmbito da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876), cujo “Regulamento Geral” definiu-se à luz do princípio emancipatório da humanidade, “sem distinção de sexo, cor, credo ou nacionalidade”. Como membro do Conselho da Primeira Internacional, Marx procurou estimular o apoio da opinião pública e das lideranças operárias da Inglaterra e da Europa à luta antiescravista nos Estados Unidos. Em novembro de 1864, ele se dirigiu diretamente ao presidente Abraham Lincoln, felicitando-o por ocasião da libertação dos escravos na seguinte forma: “Se a resistência ao Poder Escravagista foi a reservada palavra de ordem de sua primeira eleição, o grito de guerra triunfante de sua reeleição é ‘Morte à Escravidão’”. O documento condenou a exploração e opressão histórica sobre o povo “negro dominado e vendido sem o seu consentimento” e saudou a “inigualável luta pelo resgate de uma raça acorrentada”. Após o assassinato de Lincoln, Marx se dirigiu ao sucessor, o presidente Andrew Johnson, estimulando-o a dar continuidade não apenas à luta contra a escravidão, mas também pela remoção de todas as suas sequelas existentes na sociedade estadunidense, dentre as quais, o racismo.

Em O Capital (1867), na discussão sobre a reprodução da força de trabalho, Marx afirmou que no âmbito da economia escravagista, “onde os lucros anuais igualam-se com frequência ao capital global das plantações, a vida dos negros é mais inescrupulosamente sacrificada”. E complementou: “É na agricultura das Índias Ocidentais, há séculos berço de riquezas fabulosas, que tem devorado milhões de homens da raça africana”. Marx citou as Sátiras de Horácio, relidas por William Shakespeare, para dizer: “Sob outro nome, aqui é narrado de ti” ou, em outra tradução: “É sobre você que a história é contada” [Mutato nomine de te fabula narratur]. Noutra importante passagem do capítulo “A jornada de trabalho”, assim declarou: “Nos Estados Unidos da América do Norte, todo movimento operário independente ficou paralisado enquanto a escravatura desfigurava uma parte da República”. Seguindo o argumento, sentenciou a famosa frase que anos depois inspirou o Congresso Pan- -Africano de 1945: “O trabalhador de pele branca não pode emancipar-se onde o trabalhador de pele negra é marcado com ferro em brasa. Mas da morte da escravidão nasceu imediatamente uma vida nova e rejuvenescida”. Em outras palavras, Marx demonstrou que a escravização dos negros africanos era base da exploração capitalista e que não haverá superação revolucionária da ordem burguesa sem a abolição do racismo.

No capítulo dedicado à “assim chamada acumulação primitiva”, Marx analisou o papel do colonialismo e da escravatura na construção do capitalismo, localizando o racismo como relação social e histórica no momento originário do modo de produção capitalista. Em suas próprias palavras, “a descoberta das terras do ouro e da prata, na América, o extermínio, a escravização e o enfurnamento da população nativa nas minas, o começo da conquista e pilhagem das Índias Orientais e a transformação da África em um cercado para a caça comercial às peles negras marcam a aurora da era de produção capitalista”. Ao aprofundar a discussão sobre a determinação reflexiva entre racismo e capitalismo, Marx pôde compreender que as relações raciais, como circunstâncias histórico-concretas, poderiam exercer múltiplas influências na forma econômica específica de exploração com base no mais-trabalho, bem como influenciar a forma política e estatal de dominação.

Em outras palavras, Marx demonstrou que a escravização dos negros africanos era base da exploração capitalista e que não haverá superação revolucionária da ordem burguesa sem a abolição do racismo.

Em suma, diferentemente do que advoga o senso comum teórico contemporâneo de todos os matizes, de esquerda e de direita, a crítica da raça e do racismo é um aspecto definidor do marxismo. Ao assombro das imposturas intelectuais dos seus críticos (acadêmicos ou não), Marx e Engels teorizaram ao longo de quatro décadas sobre a questão racial. De modo que a práxis antirracista de Marx (e do marxismo) não se refere a um dado secundário. Na verdade, o enfrentamento ao racismo e ao ódio racial percorre todo o processo de elaboração do projeto de crítica da economia política.

Em defesa do antirracismo revolucionário

A militância socialista leitora da Revista Jacobina poderia eventualmente se perguntar: por que uma carta de Marx de 5 de março de 1870 somente foi publicada em língua portuguesa no ano de 2021 no Brasil? Certamente, muitos ainda desconheçam o seu conteúdo. Mas, podemos responder da seguinte forma: porque a questão racial perfaz aspecto central da referida correspondência (e há um evidente consórcio capitalista que busca apagar essa questão). Enviada para Laura e Paul Lafargue em Paris, Marx utilizou desta carta para demonstrar suas discordâncias profundas com as ideias pseudocientíficas de Arthur de Gobineau, contrapondo-se à lógica de classificação hierárquica das raças e ridicularizando o argumento de que a “raça branca” seria uma espécie divina perante outras raças humanas. Enfrentava, portanto, a noção de supremacia racial branca. Marx declarou que o “pai do racismo científico”, figura influente no Brasil, nutriu verdadeiro “ódio contra a raça negra” e expôs a contradição do seu método: “mépriser” [desprezar] “le nègre” [o negro] e, ao mesmo tempo, considerar “le sang noir” [o sangue negro] “la source matérielle de l’art” [a fonte material da arte]. Além disso, o documento fornece uma valiosa compreensão sobre a materialidade da ideologia racial.

Por fim, um fato absolutamente inarredável. Marx e Engels foram críticos contundentes do pensamento burguês do Ocidente. A tese do eurocentrismo ou racismo de sua obra é simplesmente uma quimera insustentável. Contudo, na medida em que aprofundaram a compreensão teórica da história do capitalismo e do racismo – o que também marcou a ruptura com a visão teleológica da história –, e uma vez que atuaram politicamente no bojo das lutas anticoloniais, abolicionistas e antirracistas, trataram de colocar o materialismo histórico dialético em ação, “como se quisessem agarrar o amplo dossel do céu e puxar para a terra” – a luta de classes.

De fato, a tese xi (“Ad Feuerbach”) continua a ser “um problema terrível em nossas vidas”. Nos termos de Fanon, “como então deixar de ouvir novamente, desorganizando o andamento da história, esta voz: ‘O problema não é mais conhecer o mundo, mas transformá-lo’”. A esse respeito, o professor August H. Nimtz Jr., referindo- -se aos desafios dos marxistas do tempo presente, em certa ocasião, declarou: “a bola está com a gente”. “No princípio era a Ação”, clamaram Goethe e Marighella. O marxismo é o antirracismo revolucionário porque fundado na perspectiva comunista da emancipação total. E, tal como Marx e os proletários internacionalista da Associação Internacional dos Trabalhadores no século xix, exclamamos: “a emancipação da classe trabalhadora consiste na emancipação de todos os seres humanos, sem discriminação de sexo, raça e nação”

Sobre os autores

Mario Soares Neto

o é advogado, professor e doutorando em Direito pela USP.

Cierre

Arquivado como

Published in América do Sul, Análise, História, Ideologia, O fim do começo, Revista 7 and Teoria

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